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Uma mulher não nasce mulher, torna-se mulher

Simone de Beauvoir - Blog do Asno
Não tenho minha opinião ancorada em qualquer categoria de pensamento, gostem ou não. Confesso, sou fã incondicional da biografia de Simone de Beauvoir (1908-1986). Minhas maiores referências no campo de realizações são as femininas, excetuando-se o grande Tesla e os self-made man da era industrial. Em minha opinião, a maior biografia feminina é a de Madame Marie Curie, mas falo dela adiante. A francesa Simone de Beauvoir foi filósofa, professora, escritora e uma das feministas mais famosas do mundo. Suas obras literárias discutem o papel da mulher na sociedade, criticam a vida burguesa e o machismo. Recentemente li alguns absurdos espalhados pela internet sobre essa mulher por causa de uma questão contida na prova de Ciências Humanas do ENEM de 2015. Qual foi minha surpresa ao constatar tanto retrocesso por causa da idiotice multiplicada! Lembrei de Nelson Rodrigues, um grande machista: "Invejo a burrice por que ela é eterna".

Não é que algumas criaturas acharam conveniente redigir uma Moção de Repúdio contra essa pensadora. O verbete de Simone de Beauvoir na Wikipedia chegou a ser invadido e cretinos agregaram informações mostrando a escritora como “pedófila” e “nazista”. A Câmara de Vereadores de Campinas, próxima da Capital, aprovou uma “moção de repúdio” que obteve vitória por 25 votos contra 5!. Houve movimentação na Câmara dos Deputados e até discursos asquerosos como o deputado Marco Feliciano (PSC-SP). Na verdade é a população de Campinas que está obrigada a mover uma ação de repúdio ao vereador Campos Filho (DEM) que tratou a inclusão de Beauvoir na prova do ENEM como algo "demoníaco". Se esse furor todo ocorreu por causa da frase de Beauvoir, reproduzida acima no título, então o estágio de burrice que alcançamos é crítico! Sou um dos poucos realmente incomodados com a liquidez do pensamento causada pelo avanço do consumo da linguagem em redes sociais, tais como o Faciobuquio. O que disse a pensadora em seu livro "O Segundo Sexo":

"Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro. Enquanto existe para si, a criança não pode apreender-se como sexualmente diferenciada. Entre meninas e meninos, o corpo é, primeiramente, a irradiação de uma subjetividade, o instrumento que efetua a compreensão do mundo: é através dos olhos, das mãos e não das partes sexuais que apreendem o universo. O drama do nascimento, o da desmama desenvolvem-se da mesma maneira para as crianças dos dois sexos; têm elas os mesmos interesses, os mesmos prazeres; a sucção é, inicialmente, a fonte de suas sensações mais agradáveis..."

Alguém sóbrio conhecendo todo o contexto em que a frase foi escrita, pode contestar, com argumentos sólidos, o que vai escrito acima? Seria diferente se outro afirmasse: "Ninguém nasce homem, torna-se"? O problema nesse infausto evento não é o fato de as pessoas terem criticado Simone sem nunca ao menos terem lido uma só linha de seus textos. O problema é o fato de todos saírem "compartilhando" em cliques nervosos sem mesmo analisar ou refletir sobre a atitude de "curtir" ou "compartilhar" algo que não foi discutido ou analisado. Essa atitude revela que já chegamos ao estado que eu sempre temi com o advento das Redes Sociais. A burrice em minha nação elevou-se a categoria máxima e, pior, investida de autoridade ocupando tribunas. Atualmente comunicar se tornou uma coisa muito mais fácil do que era e quando falamos com facilidade, falamos demais, falamos o desnecessário e tornamos fútil a linguagem. Transformamos a linguagem em um produto a ser consumido e com isso surge o lixo da linguagem.

A atuação de determinados parlamentares, pagos com dinheiro público, nesse episódio só demonstra o quão vazios de pensamento eles são e quão baixa é a qualidade de pensamento daqueles que os elegeram. O alarido que fazem é só para encobrir o quanto suas cabeças são vazias. E esse campo vazio é fértil para que se repita nas redes sociais comentários sem reflexão que alimentam o preconceito. Fatos sem dados se tornam verdades e dados sem fatos atraem novos crentes. É que a vida se tornou tão simples com tudo sendo resumido a um simples clique que o trabalho de ler, analisar, criticar torna-se uma tortura, sobretudo para uma geração que "odeia" ler. E quando lê, simplesmente consome, jamais rumina sobre o que leu. Não progredimos em nada! Com exceção de alguns espasmos de lucidez, ainda somos a mesma sociedade que repudiou a presença da magnífica Madame Curie no brasil, cuja vida doada a ciência permitiu que hoje eu possa ter o meu tratamento.

Em 15 de julho de 1926, a polonesa Marie Sklodowska Curie chegou ao porto do Rio de Janeiro. Ela visitou Águas de Lindoia, Belo Horizonte, São Paulo e só cancelou outras visitas por que houve rejeição da nossa sociedade, sobretudo por parte das mulheres daquela época. A imprensa francesa da época acusou Madame Curie de ser uma estrangeira com hábitos não convencionais e de ter acabado com o casamento de respeitáveis cidadãos franceses. Tudo por que ela, viúva e jovem, teve um envolvimento amoroso com o físico Paul Langevin, ex-aluno de seu marido Pierre Curie. A imprensa sensacionalista da França chegou a publicar as cartas trocadas pelos amantes e a comoção popular foi tão grande que manifestantes chegaram a fazer piquetes em frente à residência dos Curie, em Paris. Esse escândalo só ocorreu por que Marie Curie ganhou dois prêmios Nobel: um de Física em 1903 e outro de Química em 1911. Mas a repercussão no Brasil foi mero ciúme mesmo! E por parte das mulheres! Devo minha vida as descobertas sobre a radioatividade e os elementos químicos polônio e rádio. Feitos dessa grande mulher. Foi a primeira mulher a dar aulas na Universidade Sorbonne e, para mim, apenas sua biografia supera a de Beauvoir.

Pessoas estão diluindo suas vidas em leves toques e cliques... Não se deram conta disso ainda, mas ficarão horrorizadas quando perceberem quantos danos em suas vidas ocorreram devido a esse vício, pior que qualquer psicotrópico. Relacionamentos desintegram-se, verdades são confundidas com mentiras e vice versa. Chegamos ao estágio da interpretação individual do sentido de cada coisa e isso destrói qualquer sentido. Com o advento das redes sociais chegamos ao cúmulo de destruir a linguagem. O que isso terá como consequências? Não é culpa das redes em si, mas da lacuna de educação que nunca foi preenchida em nossa sociedade. Hoje celebramos a conectividade, mas nunca estivemos tão desconectados uns dos outros. Apenas reproduzimos, sem cessar, a burrice. Enquanto as pessoas, com seu desejo de serem importantes, aderem cada vez mais a esse hábito hediondo de multiplicar a futilidade, menos se debate o que nos leva ao progresso e evolução de nossa sociedade. Não afirmo que se deva anular a existência do Facebook, mas que se deve elevar o nível de conteúdo que se espalha na internet. Para isso, apenas com o compromisso de professores e com a magnanimidade de lideranças reais. Coisa que está escassa no momento...

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