Luiz Fux fez o que a Defesa não conseguiu
Trata-se de um episódio que evidencia como o poder da toga, aliado à inteligência de quem a veste, pode moldar uma narrativa capaz de influenciar muito além da arena jurídica. Se por um lado é valioso que juízes tragam argumentos provocativos ao debate, por outro, Fux extrapolou todas as expectativas, assumindo uma posição que beirou a advocacia, transformando-se em porta-voz de teses frágeis que, revestidas de verniz técnico, ganharam corpo.
Manobras e cambalhotas jurídicas
O voto de Fux foi repleto de manobras sofisticadas que, embora parecessem sustentadas em sólida base doutrinária, não passavam de acrobacias para servir ao resultado que ele próprio pretendia alcançar. Foram adaptações de precedentes sem conexão direta com o caso, interpretações esticadas até o limite da coerência e uma profusão de citações a juristas renomados — elementos que, em vez de iluminarem o julgamento, funcionaram como distrações cuidadosamente coreografadas.
O curioso é que, ao longo de toda a sua fala, Fux emulou a forma de um voto técnico, mas o conteúdo revelava outra natureza: era um discurso desenhado para reduzir a gravidade das condutas em análise, transformando o óbvio em dúvida e o golpismo em mera divergência interpretativa. Em outras palavras, ele fez aquilo que a defesa desejava, mas não tinha competência ou ousadia para executar.
Contextualizando: o julgamento e o que estava em jogo
Para compreender a sutileza e a audácia do voto de Fux, convém relembrar rapidamente os contornos do processo: A denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) acusa Bolsonaro e mais sete pessoas de tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, organização criminosa armada etc.
O STF, primeiramente, teve de decidir se a denúncia deveria ser recebida — ou seja, se havia indícios suficientes, se os requisitos formais estavam respeitados — para transformar os acusados em réus. Havia preliminares das defesas questionando foro, competência, acesso a documentos, excesso acusatório, natureza das provas, ato consumado versus ato de preparação etc.
Nesse cenário, muitos esperavam que Fux ficasse com um voto “tímido”, de quem reconhece os indícios, mas, por lealdade institucional, se alinhe com relator ou se limite a divergências menores. Pois bem: Fux fez mais.
O que Fux fez de diferente e como superou a Defesa
Aqui estão os pontos principais em que Fux conseguiu articular algo que a Defesa tinha tentado — e raramente conseguido com igual credibilidade:
a) Abertura para teses formais fortes: foro e competência:
Uma das manobras centrais da Defesa era alegar que o foro do STF, especialmente a competência da Primeira Turma, era inadequado para julgar algumas pessoas, pois tinham perdido cargos públicos, ou que os fatos não se subsumiam às prerrogativas do foro. Fux acolheu parcialmente essas questões — ou, ao menos, reconheceu legitimidade jurídica para tratá-las — mais do que se esperava. Por exemplo, ele sustentou que pessoas que detinham foro, mas perderam o cargo, poderiam ter esse foro perdido — o que não é uma tese trivial, pois rompe com uma tradição interpretativa do foro privilegiado.
Também defendeu que, se fosse admitido julgamento no STF, que fosse pelo plenário e não por turma, ainda que a mudança regimental recente transfira para turmas. Ou seja: ele reabriu debate institucional sobre a forma de julgamento após o mesmo ter sido pacificado entre os ministros.
Essa articulação mostra que ele foi além da mera contestação retórica: propôs normas de interpretação, precedentes, efeitos da perda de foro, regimento interno, competência do STF — elementos que muitos advogados caros propõem mas que enfrentam dificuldade de “incorporar” ao voto de ministros com peso.
b) Modulação da gravidade e da dosimetria
Outro ponto de surpresa: Fux não se manteve no altar da gravidade irrestrita, mas modulou. Ele reconhece os atos — inclusive os vídeos, provas “até no telão” apresentados pelo relator Alexandre de Moraes — mas insinua que algumas penas propostas são “exacerbadas”. Ele afirma que cabe ao magistrado a dosimetria, dentro do quadro legal, e que há espaço para mensurar contexto, condutas específicas, participação individual.
Esse tipo de modulação, de separação entre o que é fato e o que é pena, o que é responsabilidade plena ou parcial, raramente aparece com tanto destaque nos votos de defesa: Fux não absolveu todos os réus, mas deixou claro que muitas condenações e penas propostas não são inquestionáveis. Uma surpresa extra... Condenou o delator sozinho em algo que jamais seria pensado, pois como Mauro Cid teria tentado abolir violentamente o estado de direito de forma solitária!?
c) Uso de precedentes e técnica jurídica como armadura retórica
Fux mistura em seu voto referências a precedentes, ao regimento interno, à legislação penal, matérias do código penal relativas a tentativa versus consumação, bem como a interpretação constitucional de foro e de garantias processuais. Ele referencia juristas, menciona nomes de peso, cita leis, fala de princípios constitucionais como legalidade, Estado Democrático de Direito, democracia como bem jurídico protegido — e tudo isso para cercar o voto de autoridade técnico-jurídica.
Essa foi talvez a parte em que “superou” o que a Defesa tentou: não é só argumentar em público ou em sustentação oral, mas fazer constar no voto do STF uma argumentação cuidadosa que pareça construída “por dentro” das garantias do sistema jurídico, mesmo quando o efeito final é limitar ou relativizar a acusação.
As manobras e os limites: o que não casa tão bem, o que parece mais dissimulado
Contudo, um voto que parece tão bem montado não escapa de artifícios, de áreas de sombra e de “cambalhotas jurídicas” — e é aí que mora o cerne da crítica.
a) Distrações com linguagem inflamada
Fux, em diversos momentos, lança frases de efeito (“democracia conquistada entre lutas e barricadas”, “não se pode, de forma alguma, dizer que não aconteceu nada”) que soam mais poéticas do que argumentativas. Elas servem para empurrar o leitor, o observador, para um estado de comoção, de indignação, que depois justifica tecnicamente algumas concessões. São distrações: evocam a emoção, o passado, o simbolismo, tentando dar legitimidade moral ao que juridicamente se está relativizando.
b) Aproximação de teses da Defesa sem compromisso integral
Ele parece adotar algumas teses defensivas (foro, competência, dosimetria) mas nunca integralmente. Ele reconhece espaço para essas teses, mas aponta contradições ou limitações que impedem que sejam aceitas — ao menos na sua versão. Por exemplo, embora reconheça que perda de foro pode afastar competência, ele ainda admite, sob leis ou precedentes recentes, que o STF pode manter competência em certos casos (casos em que os réus tinham prerrogativa quando os atos ocorreram). Isso dilui a força da tese da Defesa. É como abrir uma porta, mas não deixar que se entre plenamente.
c) Equivocar permanentes dessas “provisórias” como definitivas
Algumas posições de Fux parecem provisórias — “se fosse em tempos pretéritos”, “há previsão legal hoje”, “debate para o final do julgamento” — mas funcionam, retoricamente, como se já fossem verdades consolidadas. Isso pode induzir erro ou gerar confusão, porque anuncia um compromisso que pode não se sustentar no voto integral ou no resultado final do julgamento.
d) A imitação do técnico como artifício
Embora o voto de Fux pareça muito técnico, bem embasado, ele, em muitos momentos, recorre a analogias clássicas ou a fórmulas jurídicas genéricas — ou a citações de juristas — mais para reforçar autoridade discursiva do que para demonstrar algo novo ou decisivo. Em muitos casos, o que ele apresenta é repetição de argumentos já veiculados pela acusação ou pela PGR, ou pela doutrina bem conhecida, mas sem trazer elementos novos que desmontem o nexo acusatório ou as provas apresentadas. Em outras palavras: o voto impressiona por forma, menos por conteúdo disruptivo.
Limites práticos do voto: por que “defesa” embora talentosa, é insuficiente
O que Fux fez pode impressionar, pode servir como um exemplo de como um ministro pode tensionar o sistema, provocar debate, testar os limites do acusatório, envolver princípios processuais. Mas — e aqui está o cerne — muitas das teses que ele abraçou como possíveis ou parcialmente válidas não alteram o destino prático da denúncia, ao menos não na fase atual:
Muitas preliminares foram rejeitadas por unanimidade ou maioria, inclusive com o voto de Fux vencido em algumas sobre competência ou foro.
O receio de que sua moderação ou sua retórica aliviante seja instrumentalizada politicamente — seja por defensores de Bolsonaro para dizer que “houve condenações brandas”, seja por críticos para acusá-lo de “estar do lado político” — é real: votos de ministros com perfil “equilibrado/técnico” correm esse risco.
Algumas das questões que Fux invoca como problemáticas para a acusação (atos preparatórios vs consumação, foro, etc.) dependem de controvérsias jurisprudenciais e constitucionais que vão além do STF atual, talvez mesmo demandem mudanças legislativas ou precedentes firmados — então não é seguro que suas dúvidas ou reservas prosperem.
Importância institucional: juízes que provocam o debate
Mesmo com as críticas, é valioso — essencial — que existam juízes no STF dispostos a provocar controvérsias, tensionar interpretações, testar limites. O direito não se exercita apenas no óbvio, no consenso tranquilo, no voto que repete. Fux, ao menos neste caso, desempenhou esse papel.
Obriga que os demais ministros respondam às teses da Defesa de modo mais preciso, não apenas com indignação retórica, mas com justificativas jurídicas.
Exibe à sociedade que, mesmo em casos gravíssimos, o sistema jurídico guarda espaço para discussão; isso legitima em certa medida o processo, ainda que o resultado venha a confirmar a acusação.
Preserva, na decisão pública, o que chamamos de “dúvida razoável” — ao menos em algumas linhas — o que é saudável ao Estado Democrático de Direito.
O que Fux fez, o que ele não fez, o que deveria fazer
Luiz Fux fez o que muitos advogados de alta reputação tentaram, mas não conseguiram: transformar ao menos parte da linha defensiva em parte do voto de um ministro, com reconhecimento público e jurídico de teses que poderiam minar ou atenuar a acusação. Ele superou expectativas justamente porque não se limitou a contestar de fora; integrou críticas e possibilidades dentro de sua própria argumentação.
No entanto, o que ele fez não muda – pelo menos ainda não – o resultado substancial esperado: a denúncia foi recebida, os réus foram formalizados. E muitos dos argumentos que pareciam promissores na preliminar demonstram-se, no voto, limitados por condicionamentos.
Para que o exercício da Justiça vá além da retórica adornada, seria necessário que as teses defensivas fossem testadas concretamente no mérito, com produção probatória rigorosa e julgamento individualizado. O STF consolidasse precedentes claros sobre foro, competência, consumação vs. tentativa, para evitar volatilidade jurídica. E que votos “técnicos” não sejam usados como escudo político, nem como forma de iludir o público de que tudo está sendo “justamente avaliado”, quando algumas partes da acusação já se mostram bem documentadas.
Seja como for, o voto de Fux será estudado. Ele deixou algo que não se apaga: um recorte de crítica interna, um furo na muralha do autoritarismo possível, uma lembrança de que a Justiça não é pré-determinada; que mesmo numa tempestade política, ainda há espaço para variação, para dúvida. “Ele extrapolou até as expectativas mais negativas” — mas extrapolar expectativas não é o mesmo que mudar destinos.
A tese do “tempo insuficiente” desmontada
Um dos pontos mais gritantes foi a acolhida da tese da defesa de que seria impossível analisar o volume de provas em tempo hábil, chegando-se a se falar em “100 mil anos” necessários para tanto. Coisa que até a imprensa repetiu de forma ingênua. Essa hipérbole, que mais parece recurso de teatro do que de tribunal, foi incorporada com seriedade em parte do voto de Fux.
Mas essa linha de raciocínio não resiste a uma análise minimamente honesta. O volume de provas, embora numericamente impressionante, era composto majoritariamente por vídeos e áudios. Ora, materiais dessa natureza são consumidos em tempo real e não demandam o mesmo esforço que milhares de páginas de documentos técnicos exigiriam. Além disso, boa parte do acervo consistia em duplicatas, repetições e conteúdos já amplamente conhecidos da opinião pública.
Ou seja, o suposto gigantismo do material probatório não passava de uma ilusão numérica, transformada em álibi conveniente para criar a sensação de que o julgamento seria precipitado. Ao reforçar esse argumento, Fux deu robustez a uma tese que não apenas era frágil, mas também já havia sido refutada por outros ministros.
O peso da toga: a casta judicial e seus paradoxos
Vale destacar um ponto que transcende o voto de Luiz Fux e nos obriga a refletir sobre a própria estrutura da magistratura no Brasil. É inegável: juízes, sobretudo os que chegam à cúpula do Judiciário, precisam ser cercados de garantias, privilégios e proteções. Não se trata de luxo ou de capricho corporativo, mas de um pressuposto funcional. Quem tem a responsabilidade de julgar o destino de outrem — seja um cidadão comum, seja um ex-presidente da República — deve estar blindado contra pressões políticas, econômicas ou sociais.
Por isso existem salários elevados, aposentadorias especiais, prerrogativas de foro, vitaliciedade, inamovibilidade e um sem-número de dispositivos que parecem excessivos quando comparados à realidade dura da maioria da população. Mas, sem esses mecanismos, o julgador estaria constantemente exposto ao risco de retaliações, chantagens e manipulações. O juiz precisa ser livre para decidir contra poderosos, contra interesses momentâneos, contra a corrente e só pode fazê-lo com segurança se sua posição for cercada por privilégios que o isolem da vingança e da intimidação.
No entanto, esse mesmo arranjo cria um paradoxo perigoso: a proteção, que deveria garantir independência, pode se transformar em soberba, abuso e sensação de impunidade. Há casos públicos e notórios de magistrados envolvidos em malfeitos, desde favorecimentos políticos até enriquecimento inexplicável, passando por decisões claramente direcionadas ao sabor de conveniências pessoais ou ideológicas. Cada episódio desse tipo mina a confiança que a sociedade deposita no Judiciário, justamente o poder que, em tese, deveria ser o mais “limpo”, o mais distante dos vícios mundanos.
E aqui o paralelo com o voto de Fux é inevitável. Seu voto, tão adornado de citações, tão bem estruturado, tão supostamente técnico, cumpre uma função dupla: de um lado, mostra a competência e a necessidade de haver ministros capazes de tensionar o debate, como já discuti; de outro, expõe o risco de que esse “teatro da técnica” funcione mais como uma blindagem discursiva do que como uma busca genuína pela verdade jurídica. Ou seja: o mesmo mecanismo que torna o juiz independente pode se tornar, em certas mãos, uma ferramenta de manipulação retórica.
Quando Fux apresenta manobras jurídicas engenhosas para abrir espaço à defesa dos acusados, ele exerce, em parte, o papel saudável de provocar a discussão. Mas, ao mesmo tempo, a forma como tais manobras se distanciam do cerne do processo e se apoiam em paralelos frágeis remete a essa contradição: a toga, protegida por privilégios, pode ser usada para enriquecer a Justiça, mas também para confundir, distrair e blindar quem dela se serve.
Em outras palavras, se a população desconfia do Judiciário é porque, em muitos momentos, vê no juiz não o árbitro imparcial, mas o “artista da toga”, capaz de produzir argumentos brilhantes que mais escondem do que revelam. O voto de Fux sintetiza esse dilema: é juridicamente sofisticado, mas, em muitos trechos, mais se assemelha a uma encenação de neutralidade do que a uma busca pelo mérito real da questão.
O impacto político e simbólico
Mesmo que os demais ministros, com relativa facilidade, desmontem os argumentos levantados por Fux, o impacto político do seu voto já está garantido. Ele será citado, repetido e explorado pelo bolsonarismo como prova de que havia dúvida legítima na condenação. Essa retórica permanecerá viva por anos, servindo como combustível ideológico para os que insistem em reescrever a história.
E não apenas no plano simbólico: o voto de Fux poderá influenciar resultados práticos, seja amenizando penas, seja abrindo brechas para recursos futuros. Em um julgamento que deveria marcar o repúdio inequívoco a um ataque à democracia, sua fala deixou fissuras por onde a narrativa dos réus continuará respirando.
Conclusão – O advogado improvável
Ao fim, o que se vê é que Luiz Fux realizou uma façanha curiosa: ao invés de se limitar ao papel de julgador, tornou-se o advogado que os réus sempre desejaram ter. Ele não apenas emprestou sua voz, mas emprestou também o prestígio da toga para dar peso a argumentos que a defesa jamais conseguiu construir.
Ainda que juridicamente esses argumentos sejam facilmente refutados pelos demais ministros, o estrago já está feito. O bolsonarismo, ávido por símbolos e narrativas, terá no voto de Fux um totem a ser reverenciado, uma prova de que a verdade deles encontrou eco até no Supremo.
O julgamento seguirá, a maioria prevalecerá, mas a história registrará este momento com uma nota dissonante: no tribunal que deveria ser a última trincheira da democracia, um ministro usou sua inteligência não para iluminar, mas para confundir, não para julgar, mas para advogar.
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