REFLEXÃO: SEM ANISTIA | OS LIMITES DA DEMOCRACIA E NOSSA RESPONSABILIDADE PARA PRESERVÁ-LA | BLOG DO ASNO
Anistia para os atos de 8 de janeiro? A verdadeira ameaça à democracia brasileira não está nas vidraças quebradas, mas no desejo de impor a vontade sobre os demais
Recentemente publiquei, em meu canal pessoal de vídeos, uma música criada dentro de um projeto paralelo que realizo com alguns músicos. O tema despertou um evidente desconforto já que existem feridas abertas em uma nação que ainda se encontra em disputa com a própria memória e resiste a refletir sobre a miséria que nos encontramos.
A proposta de conceder anistia — formal ou informal — aos participantes dos atos de 8 de janeiro de 2023 é essa ferida porque toca, ao mesmo tempo, a letra da lei e o nervo mais sensível da democracia: até que ponto a transgressão política pode ser tratada como mera infração administrativa ou guarda-se, ao contrário, a gravidade de um ataque à própria ordem democrática?
Antes de discutir a conveniência política ou moral de uma anistia, é necessário alinhar os fatos processuais: os números oficiais e as decisões práticas do Judiciário e do Ministério Público mostram que o episódio foi amplamente tratado como matéria penal, mas com caminhos diferentes para resolução das demandas — a via da condenação plena, por um lado, e a via dos acordos de não persecução/medidas alternativas, por outro. Há variação nas contagens conforme a data e o órgão, porém os seguintes marcos ajudam a explicar a dimensão do fenômeno e lança clareza sobre o que as mentes brilhantes (preguiçosas) têm discutido nos fóruns das redes sociais.
No plano factual e processual
• O Supremo Tribunal Federal (STF) e órgãos públicos já responsabilizaram, em diferentes etapas processuais, centenas de envolvidos nos atos golpistas do dia 8 de janeiro. Em relatórios públicos e balanços, o total de réus já responsabilizados pela PGR/STF avança conforme homologações e sentenças são proferidas. Em boletins oficiais e reportagens recentes constam centenas de condenações homologadas pelo STF e centenas de acordos homologados com o Ministério Público.
• Em números divulgados pela imprensa e por órgãos do Judiciário/Ministério Público, há referências que ajudam a orientar a compreensão: por ocasião de levantamentos recentes, foram informados patamares do tipo “centenas de condenações” e “centenas de acordos aceitos” — por exemplo, balanços que apontam para mais de 600 condenações homologadas em dado momento e, em paralelo, um volume semelhante de acordos de não persecução penal (ANPP) validados em diversas sessões e homologações. Esses números evoluem com o tempo em função de homologações subsequentes e de novos oferecimentos de acordo.
• Variação conforme data de apuração. Reportagens indicaram, para períodos recentes, números como cerca de 1.600 réus processados em determinadas frentes, com algo na ordem de 500–550 fechando acordos com a Procuradoria e outro contingente — da mesma ordem de grandeza — recusando a proposta e seguindo para julgamento pleno. Em levantamentos complementares, há menções a cerca de 500–546 acordos formalizados e a cerca de 237 a 527 réus que teriam recusado acordos em diferentes apurações jornalísticas. A existência de variações decorre do recorte temporal, do critério técnico (quem é processado pela PGR, quem vai a julgamento no STF, quem está em primeiro grau etc.) e da atualização contínua dos dados.
• Importante ponto jurídico: o Supremo e outros tribunais já enfrentaram a questão do uso retroativo de instrumentos como o acordo de não persecução penal — ou seja, a possibilidade de ajustar soluções consensuais mesmo para fatos anteriores a certas mudanças legislativas —, o que altera o horizonte prático das negociações entre acusação e réu. Essa possibilidade processual contribui para explicar por que uma parte relevante dos investigados acabou por aceitar condições alternativas ao processo penal tradicional.
Os números, como se vê, importam — e, ainda assim, são dinâmicos. Por esse motivo, qualquer citação de “quantos foram julgados”, “quantos aceitaram acordo” e “quantos recusaram” deve ser apresentada com fonte e data: as operações de homologação de acordos e de prolação de sentenças ocorreram em rodadas ao longo de 2023–2025, e novos atos judiciais continuam a alterar os totais.
Em resumo, simplesmente quem admite a "ogrice" de ter se deixado manipular naquele episódio, apenas leva um registro na sua biografia sem ter de cumprir pena em regime fechado. Apenas os teimosos e que acreditam não terem feito nada de errado é que seguem humilhados.
Mas a questão que proponho não é contabilística apenas: é antropológica e política. O debate público reduz-se, com frequência, a duas narrativas opostas e simplistas: ou se trata de “pessoas comuns enganadas” que mereceriam clemência, ou se trata de “terroristas” que exigem punição exemplar. Ambas as narrativas ocultam uma dimensão mais funda, que me interessa destacar.
A verdadeira transgressão — além das vidraças e dos móveis quebrados — foi a tentativa de impor, pela violência, a vontade de um grupo sobre o resultado legítimo de um pleito. Se o crime mais óbvio foi a depredação do patrimônio público, o crime mais profundo talvez tenha sido o ataque ao princípio segundo o qual, numa democracia, a disputa pelo poder termina nas urnas — e, decorrido o processo eleitoral, quem perde deve aceitar o veredito das instituições e do eleitorado. Esse é o núcleo moral que toda resposta jurídica deveria preservar.
Nesse ponto surge a tentação — compreensível, por razões políticas ou por compaixão social — da anistia. Anistiar, no jargão político, é apagar efeitos penais e, muitas vezes, políticos de um ato. Em democracias maduras, anistias amplas costumam ter custos civis e simbólicos: quando o Estado desculpa ou blinda condutas que atingiram a estrutura da própria democracia, cria-se um precedente perigoso de impunidade que pode incentivar novas tentativas de subversão.
Por outro lado, também é verdade que o sistema penal não é concentrado em ordenar todo o tecido social. Há diversos mecanismos extrapenais e administrativos — censura política, exclusão eleitoral, sanções reputacionais, bloqueio de bens, inabilitação para cargos públicos — que, combinados, podem oferecer respostas eficazes sem recorrer somente ao encarceramento em massa. Parte do movimento de ofertas de ANPP e de penas alternativas seguiu justamente esse raciocínio: desfazer o caráter de primazia punitiva sem deixar de aplicar consequências.
Há, enfim, uma terceira dimensão: a fraqueza da própria democracia brasileira que facilitou essa tempestade política. Defeitos do sistema eleitoral, desinformação massiva, ambientes segmentados de mídia social e o frágil filtro de formação cívica são problemas reais e relevantes. Entretanto, a parcela mais pesada de responsabilidade recai sobre os próprios eleitores que se negam a politizar-se de modo responsável — isto é, que preferem a polarização fácil, as identidades simplificadoras e as narrativas maniqueístas a um envolvimento crítico, informado e plural. A polarização empobrece o debate e facilita que lideranças mobilizem multidões para ações ilegítimas — como se viu em 8 de janeiro. Esta não é uma verdade confortável, mas é uma lição que deve ser aprendida por quem ama a República.
Portanto, como avaliar a proposta de anistia?
Legalmente: há fortes argumentos institucionais para que condutas que atentem contra a ordem democrática não sejam tratadas com brandura indiscriminada. Ademais, certas decisões judiciais e posicionamentos dos ministros indicam resistência à ideia de “perdão” amplo para fatos desse porte.
Politicamente: anistias totais costumam ter efeito corrosivo na confiança pública, sobretudo quando a vítima é a própria instituição democrática. Ao mesmo tempo, medidas seletivas e rigorosas de responsabilização podem ser equilibradas com penas alternativas para casos de menor gravidade, desde que não signifiquem impunidade simbólica.
Moralmente: a sociedade tem o direito de exigir responsabilidade, mas também o dever de questionar se o sistema penal é a via exclusiva e mais justa para a reparação democrática. A resposta ética deve combinar responsabilização, educação cívica e medidas que reduzam a chance de repetição.
A diferença entre a anistia de 1979 e a anistia pretendida agora
Há quem, de forma apressada ou conveniente, compare a atual proposta de anistia aos participantes dos atos de 8 de janeiro com a Lei de Anistia de 1979, aprovada no ocaso do regime militar. Mas as duas situações pertencem a mundos morais, políticos e jurídicos completamente distintos.
A anistia de 1979 foi concebida como um instrumento de transição, um pacto — ainda que imperfeito — entre forças civis e militares para possibilitar o retorno à democracia. Seu objetivo era libertar presos políticos, permitir o regresso de exilados e restaurar direitos cassados, como o de expressão e de participação política (justamente o que seria suprimido novamente). Era, portanto, uma anistia voltada a vítimas de um regime autoritário, concedida aos que lutaram pela redemocratização, ainda que, no texto final, também tenha alcançado agentes do próprio regime, numa tentativa de “pacificação” institucional.
A anistia pretendida hoje, ao contrário, seria aplicada a cidadãos que agiram contra a democracia, não em sua defesa. Enquanto a de 1979 buscava reconciliar um país ferido pela censura, tortura e repressão política, a proposta contemporânea tenta absolver pessoas que atacaram os três poderes constituídos e tentaram subverter a ordem democrática recém consolidada. Em 1979, anistiava-se o dissenso silenciado; em 2023, discute-se anistiar a insurreição.
A natureza ética também se inverte. A anistia de 1979 foi uma ponte — discutível, mas necessária — entre a tirania e a liberdade. A anistia de agora seria uma ponte entre a liberdade e a permissividade. No primeiro caso, o Estado admitia seus próprios abusos para permitir o retorno do debate político; no segundo, o Estado seria instado a desculpar o abuso de quem quis calar o debate pela força.
Por isso, ainda que ambas compartilhem o mesmo nome jurídico, têm sentidos históricos opostos: a de 1979 libertou a democracia; a proposta de 2023 a ameaça.
Finalizo com uma advertência e um apelo. A advertência é contra a tentação do silêncio institucional: “deixar como está” por medo de escalar o conflito ou por cálculo eleitoral é uma forma sutil de anistia — e todas as anistias, explícitas ou veladas, deixam rastros perigosos. O apelo é para a ação cívica: se desejamos evitar novos 8 de janeiro, não haverá solução meramente punitiva nem mero perdão simbólico. A solução duradoura passa por fortalecer instituições, aprimorar o sistema eleitoral, combater a desinformação e, sobretudo, cultivar um eleitorado mais crítico sem sucumbir à polarização.
Se a lei e a democracia precisam de reparos, que se reformem as instituições; se a cultura cívica pede remédio, que se eduque a praça pública; se há cidadãos que transgrediram, que se responsabilizem com proporcionalidade. Anistia em branco, em troca de esquecimento, seria um erro. Entretanto, o ódio de hoje não se corrige apenas com prisões de amanhã: corrige-se também educando, debatendo e recusando a violência política como instrumento de poder.
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