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Diário de um Grunhento: Celular, uma ferramenta para afastar os outros

Celulares Antigos - Um Asno
Eu tenho um celular... É daqueles que se recebe em forma de troco quando se compra um doce na padaria. Acho-o um aparelhinho muito útil, por sinal. Pode, caso eu me perca, me ajudar a conseguir socorro e me auxiliar a entrar em contato com alguém, caso eu necessite. E pode, ainda, como estou muito longe das pessoas que conheço, me ajudar a receber notícias relevantes quanto a situação dessas pessoas. Sem sombra de dúvidas, muito útil! Mantenho ele ligado muitas vezes, mas minha maior alegria é não ouvi-lo tocar. Se ele não toca, está tudo bem! Quando toca, geralmente é de cobradoras, sobretudo, atrás de gente de quem nunca ouvi falar. Ou ainda, aquelas irritantes mensagens oferecendo promoções das operadoras. Nunca me ocupei em pensar no quanto esse aparelho tem sido utilizado, cada vez mais, com uma ferramenta... Para destruir a civilização a partir dos relacionamentos!

Ontem, enquanto caminhava pela Praça 8 ao retornar do trabalho para casa, passou por mim um rapaz de cabeça baixa e ar pesado como se seu dia não tivesse sido dos mais agradáveis. Não havia percebido ainda (e eu menos!) que na esquina uma jovem de braços cruzados o aguardava. Quando ele se aproximou dela despertou de seu torpor e ameaçou um sorriso débil ensaiando estender os braços para o que poderia se tornar um abraço. Ao que a jovem impediu em tom suficientemente audível, ao menos para todos que passavam pela praça: "Por que você desliga essa pôrra de celular?". Obviamente com máxima ênfase na palavra com "p". Não fiquei para descobrir a razão, mas passei a refletir sobre esse troço que vem se tornando cada vez menor quanto a forma e muito mais presente na vida das pessoas. Tornou-se uma muleta para aqueles que coxeiam emocionalmente. Tornou-se um cabresto emocional que mais afasta as pessoas do que as aproxima.

Será que as pessoas se tornaram tão egoístas e tão superficiais que acumulam a pretensão de forçar aos outros a acreditarem que uma ligação é apenas para saber como foi o dia? Uma demonstração legítima de afeto? Há vinte anos não haviam celulares e as pessoas demonstravam afeto até com muito mais eficácia. Aos menos se mandavam menos coisas virtuais, como flores e corações digitalmente produzidos! Há mais tempo ainda, mimos e flores de verdade eram mais constantes e não presentes apenas em determinadas datas. Não sirvo para referência ou comparação, celulares me incomodam. Não utilizo "zapzap" e nem fico ligando para as pessoas para provar que me interesso por elas. Se eu quisesse compartilhar minhas emoções com alguém lhe enviaria uma carta! Acho mais elegante do que as reduções "kkkk", "rsrsrs" e outras tantas abreviaturas injustificáveis. A comunicação sempre foi o calcanhar de Aquiles na civilização por que poucas vezes é refletida, talvez por conta do tempo que isso demandaria. Resolvemos o problema comunicando muito mais em tempo ainda menor!

Com certeza, mães ligam para os filhos para saber se tudo caminha bem. Casados, talvez... Namorados não! Senão, quando há razões para preocupação, claro. No máximo utilizam esse pretexto como válvula de suas próprias frustrações e carências. Basta observar que poucos segundos após a vítima começar a dizer como foi o seu dia, do outro lado a voz não permite a conclusão por que ela está mais interessada em dizer como foi o dela! Muitas vezes até as mães e os casados incorrem no mesmo desvio de objetivo. Celulares atualmente executam de tudo, menos sua função precípua que seria facilitar a comunicação urgente! Tem seu lado positivo, mas também é de uma positividade perversa. Negócios são fechados através do celular, mas isso distancia e gela o contato olho a olho. O celular, na realidade, se tornou um instrumento perverso do mundo moderno. Até relacionamentos são terminados com mensagens de texto para demonstrar o quanto as pessoas são boas em exigir atenção quando querem que seu contato seja correspondido, mas horríveis quando precisam corresponder ao mínimo de respeito ao outro. Emoções se tornaram mecanizadas, eletrônicas e isso é assustador.

Ainda há mais uma questão e esta fundamentalmente me atinge. Um indivíduo que liga para outro, ou provoca a troca de mensagens de maneira fútil, sem objetividade alguma, além de desperdiçar abominavelmente a sua vida, rouba o precioso tempo da sua vítima que voluntariamente se entrega ao ciclo. Já era difícil antes, mas agora perdeu-se definitivamente a capacidade de se viver em autêntico tempo real com o cultivo do afeto presencial. Limitei o uso de celulares nas dependências da empresa uma vez e não me surpreendi com os resultados. O tempo pareceu alargar-se mais e o trabalho produtivo rendeu mais. Não me refiro apenas as atividades obrigatórias contidas na descrição de cargos e funções! Pessoas viciadas passaram a ter uma percepção nova como se as horas fossem maiores e coubessem mais coisas dentro delas. E de fato cabem!! Já não havia tanta necessidade para a pressa. Aliás, como tudo hoje em dia é feito às pressas! Acredito que até no sexo as pessoas tem se interessado em ficar menos tempo só para poderem voltar ao exercício preferido que é passear com os dedinhos sobre o ecrã desse trocinho.

Será que sou o único anormal dentro dessa nova sociedade? Para mim, ver pessoas caminhando e digitando no celular é coisa de doido! Eu acho que estou doido quando vejo alguém passando por mim e falando com o vento! "Ah, não tem nada pra fazer enquanto vou ao trabalho ou a escola", dizem alguns... Leia um livro pôxa! Faça palavras cruzadas, mas não desperdice o tempo enquanto surrupia o tempo de alguém! Vai ter muita gente me criticando e dizendo que só escrevo esse tipo de bobagem por que não gosto de celulares e quero que todos sejam como eu. Imagina! Não sou tão ruim!! Recentemente, um antigo cliente me forneceu seu novo número para que eu entrasse em contato com ele... Como cidadão integrado e atualizado que sou, não poderia deixar de demonstrar meu interesse. Na primeira vez que liguei uma mensagem dizia que aquele numero não estava autorizado a receber aquele tipo de ligação (não era a cobrar, que fique claro!!). Se eu não ligasse novamente talvez pudesse parecer com desinteresse ou pouco apreço ao contato... Tentei mais oito vezes e a resposta foi a mesma. Bolas! Eu tentei...

Acredito mesmo na qualidade que existe por trás dessa tecnologia e sou muito grato ao Capitalismo por ter promovido condições para que ela existisse. Mas, não consigo deixar de me preocupar ao ver tanta gente recebendo e compartilhando um universo de bobagens, enquanto come, fala, trabalha (!!!) e até faz sexo! Uma pessoa que fala ou escreve no celular enquanto dirige, atravessa a rua ou dialoga com outras está tudo, menos conectada com o mundo real. Até parece que o indivíduo quer acreditar que agindo assim está ocupando toda a sua capacidade cerebral, afinal faz mais do que uma coisa por vez! A culpa não recai sobre o celular que é ótimo, não duvido disso. Mas nós o tornamos um complemento, uma extensão de nós e isso é um atestado de que não vamos bem como seres racionais pretensiosamente superiores. Parece que estamos carentes, de fato, mas é uma carência coletiva. Finalmente nos tornamos unos... Uma unidade autêntica formada por vazios que anseiam por serem preenchidos por uma conexão ilusória. Temos ficado cada vez mais obcecados por absorver o máximo possível de algo que não fará a menor diferença na nossa vida ou na morte. Para que estarmos tão informados e tão completados com tanta informação inútil mesmo?

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