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Qual é a melhor maneira de se punir um idoso por nossos erros?

Idosos no Brasil - Um Asno
Pensa num cara cagado que amanheceu com os dois pés esquerdos! Numa das raras vezes que consegui ter uma noite de sono completa (dormi no meio do debate do Canal Livre sobre a crise no Oriente Médio e acordei hoje com alguém desejando a paz do Senhor na televisão), tendo que levar minha filha a escola e com o carro, autoritariamente, exigindo reparos urgentes e, ainda por cima, arrogantemente, se apresentando para o expediente sem combustível, não me restando outra alternativa, senão, implorar para minha filha de dez anos que quebrasse o protocolo e me emprestasse uns cobres para abastecer (obviamente ela resistiu de maneira austera, mas acabou cedendo),  deparo-me, ainda, com um pneu traseiro desagregado e desrespeitosamente murcho!

Primeiro procedimento: efetuar a troca... Estepe furado devido a um reparo mal feito (nunca mais volto naquela borracharia!). Protocolo de contingência: levo-o ao posto, encho-o e trato de seguir com o pneu furado mesmo. Ao sentar no confortável banco, constato que o cinto travou e se recusa a ceder aos meus caprichos em tentar fixá-lo ao seu engate. Minha filha constata ainda, que a porta do seu lado não está travando. Contudo, meu humor não foi afetado. Um jeitinho aqui, outro ali e tah, dah! Sigo para mais um feliz princípio de semana com um clima singularmente ameno.

Tive uma conversa agradável com uma cliente antiga no princípio da manhã e segui com meu pneu murchando, meu sinto travado e minha porta rebelde para uma entrevista agendada para às 9h. Levei cano na entrevista. Dirigi-me a uma mecânica para providenciar alguns reparos às 10h, mas o atendente me informou que só poderia mexer no veículo depois das 14h devido a fila de espera. Decidi ir falar com outro cliente em busca de uma tarefa remunerada e ao chegar a esquina vejo uma senhora muito frágil atravessando a rua com seus passos delicados e inspirando cuidados. Vi a senhora... O que não vi, por que estava muito rápido, foi o motoqueiro que a atropelou. A simpática senhora deu um rodopio e, no que parecia um exercício aeróbico mal sucedido, pranchou a testa no asfalto. O condutor, que carregava uma passageira, retornava, enquanto eu manobrava o carro a certa distância da idosa.

Transeuntes (não sei da onde sai tanta gente nessas horas), sem muito o que fazer na ocasião, se envolvem, enquanto o motoqueiro e a companheira protestam pela falta de cuidado da idosa (como se o código de trânsito não desse a preferência aos pedestres!). Para muitos, a culpa é do idoso! Um senhor solícito levanta a idosa que esguicha sangue pela têmpora e faz sinal pedindo para que eu a conduzisse ao médico. Assenti prontamente, ao que outro me informa que devo levá-la a outro lugar, cujos cuidados seriam mais imediatos. Novamente concordei. Puseram-na cuidadosamente no interior do meu carro (porta não fecha!), mas a senhorinha, temente a Deus foi prontamente assistida - como um milagre a porta travou! - Conduzi-a até o lugar sugerido (até então, o motoqueiro me acompanhou). Lá chegando, o óbvio! Não era lá que devíamos conduzir a idosa. Encaminharam-me para o Pronto Socorro. Nesse ínterim, o motoqueiro me deu um perdido e eu não anotara sua placa!

Chegando no Pronto Socorro Municipal e com a senhora Ivone (já havia lhe perguntado algumas coisas para mantê-la consciente, mas me esqueci do sobrenome), que nasceu em 24 de novembro de 1929, na cidade de Glicério, já mais recuperada e com o sangramento estancado, não encontro vaga para enfiar o possante. Nessas horas, nosso cérebro afetado parece escolher sempre a resposta menos óbvia e o caminho mais longo para uma solução. Parei defronte a entrada, me certificando que dona Ivone seria capaz de descer e tomar assento, para, em seguida, dobrar a esquina em busca de vaga apropriada. Rodei o quarteirão e não achei nada! Acabei socando na vaga da ambulância mesmo...

Ao correr para o balcão escuto alguns comentários: "Alá o cachorro que atropelou a veinha", "Nun tem que prendê, temqui matá um sujeito desse!". Ignoro as sentenças, mas me chateio com alguns predicados atribuídos a minha pessoa. Porém, não revido. Estava mais preocupado com dona Ivone que já estava no pré atendimento. Com a devida licença, penetro a sala para acompanhá-la, mas descubro que quem deve fazê-lo é alguém com parentesco. Dona Ivone, já lúcida e com um enorme galo na testa, informa que é solitária e os parentes mais próximos moram muito distantes dela! A atendente me esclarece que demoraria muito para que dona Ivone fosse liberada. Ao final de algumas considerações e com a garantia de que uma ambulância conduziria dona Ivone para casa, decido me retirar, pois já havia vencido o prazo para encher o pneu novamente.

Ainda houve tempo para uma pequena discussão acerca da vaga da ambulância, mas nada que mereça um registro. No caminho de volta vim refletindo sobre a condição dos idosos em nosso país, cujo primeiro desrespeito é aliviar sua condição tratando-os como "melhor idade". Melhor Idade seria se mais respeito e gratidão eles recebessem do restante da sociedade. Pra dizer a verdade, muitos jovens atualmente se entrincheiram em causas contra o preconceito, racial, social, sexual, mas poucos em meu país assumem uma causa verdadeiramente justa: o preconceito com os idosos! O que dona Ivone sofreu, sobre todos os aspectos, foi uma agressão covarde e insensível. Primeiro por causa do violento golpe, depois ao tentar imputar a ela a culpa de existir e querer fazer uso de sua liberdade de ir e vir (sem ser atropelada), e, por último, pelo tratamento desumano do agressor de evadir-se do local como se nada tivesse com o fato.

Dona Ivone teve um princípio de semana ainda pior que o meu, pois teve sua dignidade violentada pelo desrespeito. Ainda voltarei a discorrer sobre os idosos. Por hora, fica meu registro de repúdio as pessoas que pensam viver eternamente jovens como Mel Gibson.

Um comentário:

  1. Nossa e eu que tinha achado que o meu dia estava ruim hem, perto do seu ele estava é lindo.. E fico muito triste em ver como nossos idosos são desrespeitados, acho que nos esquecemos que seremos os idosos de amanha ...

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