Degraus da Ilusão: Governo manda "classe média" consumir mais!
Não resisti! O artigo da Lya Luft está muito bom! ai na íntegra para vocês:
"Fala-se muito na ascensão das classes menos favorecidas, formando uma
“nova classe média”, realizada por degraus que levam a outro patamar
social e econômico (cultural, não ouço falar). Em teoria, seria um
grande passo para reduzir a catastrófica desigualdade que aqui reina.
Porém, receio que, do modo como está se realizando, seja uma ilusão
que pode acabar em sérios problemas para quem mereceria coisa melhor.
Todos desejam uma vida digna para os despossuídos, boa escolaridade para
os iletrados, serviços públicos ótimos para a população inteira, isto
é, educação, saúde, transporte, energia elétrica, segurança, água, e
tudo de que precisam cidadãos decentes.
Porém, o que vejo são multidões consumindo, estimuladas a consumir
como se isso constituísse um bem em si e promovesse real crescimento do
país. Compramos com os juros mais altos do mundo, pagamos os impostos
mais altos do mundo e temos os serviços (saúde, comunicação, energia,
transportes e outros) entre os piores do mundo. Mas palavras de ordem
nos impelem a comprar, autoridades nos pedem para consumir, somos
convocados a adquirir o supérfluo, até o danoso, como botar mais carros
em nossas ruas atravancadas ou em nossas péssimas estradas.
Além disso, a inadimplência cresce de maneira preocupante, levando
famílias que compraram seu carrinho a não ter como pagar a gasolina para
tirar seu novo tesouro do pátio no fim de semana. Tesouro esse que logo
vão perder, pois há meses não conseguem pagar as prestações, que ainda
se estendem por anos.
Estamos enforcados em dívidas impagáveis, mas nos convidam a gastar
ainda mais, de maneira impiedosa, até cruel. Em lugar de instruírem,
esclarecerem, formarem uma opinião sensata e positiva, tomam novas
medidas para que esse consumo insensato continue crescendo – e, como
somos alienados e pouco informados, tocamos a comprar.
Sou de uma classe média em que a gente crescia com quatro
ensinamentos básicos: ter seu diploma, ter sua casinha, ter sua poupança
e trabalhar firme para manter e, quem sabe, expandir isso. Para
garantir uma velhice independente de ajuda de filhos ou de estranhos;
para deixar aos filhos algo com que pudessem começar a própria vida com
dignidade.
Tais ensinamentos parecem abolidos, ultrapassadas a prudência e a
cautela, pouco estimulados o desejo de crescimento firme e a construção
de uma vida mais segura. Pois tudo é uma construção: a vida pessoal, a
profissão, os ganhos, as relações de amor e amizade, a família, a
velhice (naturalmente tudo isso sujeito a fatalidades como doença e
outras, que ninguém controla). Mas, mesmo em tempos de fatalidade, ter
um pouco de economia, ter uma casinha, ter um diploma, ter objetivos
certamente ajuda a enfrentar seja o que for. Podemos ser derrotados, mas
não estaremos jogados na cova dos leões do destino, totalmente
desarmados.
Somos uma sociedade alçada na maré do consumo compulsivo, interessada
em “aproveitar a vida”, seja o que isso for, e em adquirir mais e mais
coisas, mesmo que inúteis, quando deveríamos estar cuidando, com muito
afinco e seriedade, de melhores escolas e universidades, tecnologia mais
avançada, transportes muito mais eficientes, saúde excelente, e
verdadeiro crescimento do país. Mas corremos atrás de tanta conversa vã,
não protegidos, mas embaixo de peneiras com grandes furos, que só um
cego ou um grande tolo não vê.
A mais forte raiz de tantos dos nossos males é a falta de informação e
orientação, isto é, de educação. E o melhor remédio é investir
fortemente, abundantemente, decididamente, em educação: impossível
repetir isso em demasia. Mas não vejo isso como nossa prioridade.
Fosse o contrário, estaríamos atentos aos nossos gastos e aquisições,
mais interessados num crescimento real e sensato do que em itens
desnecessários em tempos de crise. Isso não é subir de classe social: é
saracotear diante de uma perigosa ladeira. Não tenho ilusão de que algo
mude, mas deixo aqui meu quase solitário (e antiquado) protesto".
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