Lula, uma criação das elites. Ou: Lula é uma invenção de Marta!
Todos
vimos a sem-cerimônia com que Luiz Inácio Lula da Silva atropelou e
esmagou a pré-candidatura de Marta Suplicy (PT) à Prefeitura de São
Paulo. Justo Marta, com tantos serviços relevantes prestados à causa do
partido! E olhem que nem me refiro ao fato de que foi deputada, prefeita
e é agora senadora — mais do que isso: sempre deu a cara ao tapa em
defesa da legenda. Do que falo então? Já chego lá! Antes, algumas
considerações.
Lula atuou
como se Marta fosse uma das criaturas paridas em sua mente divinal. Na
condição, então, de um invento seu, de algo que ele próprio deu à luz na
política, poderia ser empurrada, encostada, submetida a tarefas humilhantes. Afinal, ao demiurgo tudo! Muito especialmente a honra!
Marta, no entanto, por quem nunca tive simpatia — e continuo a não ter,
antes que alguns bobocas infiram que passei a chamá-la de “minha loura”
—, dá sinais de que não pretende se comportar como a mulher submissa que
já não existia em 1980, quando TV Mulher foi ao ar, sob o comando de
Marília Gabriela. Lá se vão 32 anos! Marta era titular de um quadro que
falava sobre sexo, rompendo alguns tabus. Naquele ano, também era
fundado o Partido dos Trabalhadores, para ser “diferente de tudo o que
está aí”.
Pode haver
algo mais igual ao pior Brasil do que um coronel que impõe na base do
dedaço quem será o candidato a prefeito em São Paulo ou em Recife?
Goste-se ou
não do que pensa Marta Suplicy — eu, por exemplo, não gosto —, ela tem
uma história de autonomia, de altivez e até de certa coragem temerária.
Certamente sabia que a separação de Eduardo Suplicy em 2001 teria um
custo político. Encarou a situação. Ele se excedeu em entrevistas a
respeito, o doce falastrão. Marta silenciou. Lula tentou reduzi-la a uma
peça descartável, a mero peão no jogo político do partido, destituída
de voz e de vontade. Agiu como os maridos que já eram uma caricatura
naquele longínquo 1980. Eis o busílis. Estamos começando a chegar ao
ponto.
Não foi Lula
quem inventou Marta. Foi Marta quem inventou Lula. Explico. A agora
senadora integra um setor da elite brasileira que criou um líder dos
sonhos. Se ele se fez chefe de sindicato por sua própria conta e talento
— é bem verdade que o general Golbery do Couto e Silva deu uma
forcinha! —, só se tornou o demiurgo, o homem capaz de encarnar a
redenção dos oprimidos, na imaginação de alguns intelectuais uspianos e
com o apoio de uma fatia dos bem-pensantes, de que Marta é uma das
expressões.
Na narrativa
que inventou inicialmente para si, Lula era um homem da sua classe —
daí que sua legenda trouxesse no nome a natureza restritiva de que era
composta: “dos Trabalhadores”. Era, como diz de si mesmo hoje o PSTU (e
sem sucesso!), um “partido sem patrões”. Não se esqueçam de que eu
conheço esse troço desde a origem… Discutia-se, por exemplo, se o dono
de um pequeno comércio de bairro poderia ser um petista autêntico.
Alguém objetava: “Desde que sem empregado!”. Outro não se conformava:
“Mas e o lucro? Petista pode viver do lucro?”. Marilena Chaui chegou a
dizer numa entrevista que não tinha empregada doméstica para não “não
levar a luta de classes pra dentro de casa”!!! Os grupelhos de extrema
esquerda que se juntaram aos sindicalistas de Lula e aos setores ditos
“progressistas” da Igreja Católica foram dando ao líder sindical
meramente reivindicador a têmpera do “socialista” — aquele que perdia
eleição após eleição.
Já o Lula
acima das classes, hoje ”companheiro” do Eike Batista e dos catadores
de papelão, para citar os Brasis extremos, é uma construção dos setores
“conscientes” e “críticos” da elite brasileira. Marta nunca foi
“socialista” evidentemente (nem Lula, diga-se!). Mas está, ao lado de
Eduardo Suplicy, ex-marido, na raiz da popularização do PT. “Como,
Reinaldo? O PT se popularizou à medida que atraiu alguns ricos?” Não há
contradição nenhuma nisso! Ao deixar de ser um bicho-papão, rompia o
isolamento inicial. Ainda hoje é mais fácil encontrar jovens petistas
(ou socialistas) convictos nos colégios de São Paulo que cobram
mensalidades acima de R$ 2 mil do que nas escolas públicas de Capão
Redondo! “O que vale é a consciência!…” De resto, parece haver certa
correlação entre o ócio e a adesão a teses de esquerda — ou
“progressistas”, como se diz hoje em dia.
Lula criou o PT. Mas foram as elites críticas que criaram o “petismo”.
O Apedeuta
está entre aqueles que têm menos ambição de mudar o mundo do que de
dominá-lo. Isso faz uma grande diferença. Em larga medida, o pensamento
realmente mudancista — ou, se quiserem, verdadeiramente revolucionário
(pouco importa se boa ou má revolução) — nasce de utopistas pouco
pragmáticos; trata-se de uma militância mais afeita ao cultivo de
valores intelectuais, ainda que possam produzir grandes desastres. O
negócio do Apedeuta é outro. É um caçador de oportunidades — era assim
desde os tempos em que era líder sindical em São Bernardo. É bom lembrar
que, nos estertores do regime militar, rejeitou a aliança com outras
forças de oposição porque aquilo não servia à construção de sua
liderança.
O que estou
dizendo, meus caros, é que, ao atropelar Marta em São Paulo de maneira
tão truculenta, Lula esmaga, por certo, uma parte da história individual
da petista, mas também uma parte da história do seu próprio partido. E é
até aritmeticamente injusto. O PT venceu na cidade uma única vez: e foi
justamente com Marta — Luíza Erundina não conta porque era eleição em
turno único. Atenção! Lula, ele mesmo, jamais ganhou uma eleição
majoritária na cidade; sempre teve menos votos do que seus concorrentes:
Montoro (quando disputou o governo de São Paulo, em 1982), Collor
(1989), FHC (1994 e 1998), Serra (2002) e Alckmin (2006).
“Marta vai
entrar na campanha de Haddad porque os petistas sempre acabam se
arranjando”, dizem alguns. Pode ser. Não vou me meter a fazer previsões
nesse caso. No petismo, outas pessoas humilhadas por Lula acabaram lhe
prestando, mais tarde, vassalagem. Neste texto, limito-me a demonstrar,
mesmo sem ter o menor apreço político por Marta, que a sua reação tem
uma história, que não se limita a mero faniquito, como deu a entender um
desses estafetas do lulismo, travestido de cientista político. Mas nada
impede, é evidente, que a agora senadora sacrifique a sua história no
altar do lulismo. Ele é fascinado por rituais de humilhação e rendição.
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